Fazendo uso de uma memória privilegiada, associada a uma grande capacidade descritiva, o Autor propõe-se desenvolver uma descrição histórica da sua existência, através de três continentes: África (onde nasceu e mais tarde trabalhou), Europa (em que estudou Engenharia Mecânica e fez o serviço militar) e América do Sul (onde reside e esteve na maior parte da sua vida). Angola, Portugal e Brasil são assim os palcos desta aventura incessante, polvilhada de numerosos episódios que deixam o leitor curioso e, ao mesmo tempo, pensativo. Cronologicamente, o historial do seu percurso de vida tem início muitos anos antes de nascer, com as agruras do seu Pai na aldeia onde residia, culminando com a fixação de residência em Angola, onde foi um industrial muito dinâmico e respeitado. Tais fundamentos de ordem genética tiveram enorme influência nas sucessivas etapas profissionais que abraçou, sempre caracterizadas por grande apego e dedicação, muita energia e elevada dose de profissionalismo. Para aqueles que, como eu, foram testemunhas da vivência do autor nos três países acima referidos e, por vezes envolvidos nos episódios relatados, seja como companheiros de escola, de profissão e na vida familiar, é possível destacar diversas facetas do conteúdo do livro, que importa mencionar. Desde logo, a invulgar capacidade de caracterização do espaço e do tempo subjacentes aos factos relatados, algo que excedeu as limitações da nossa memória, ajudando-nos a reviver situações que já pertenciam ao esquecimento. Só por isso, obrigado Marcelo. Mas não só. Somos inteiramente solidários na perspectiva de encarar com realismo os factos políticos que influenciaram decisivamente as nossas vidas. Refiro-me, em especial, ao atabalhoado processo de independência de Angola, conduzido por um bando de oportunistas disfarçados de políticos, sob o patrocínio de um outro bando de políticos radicais misturados com militares frustrados, autoconvencidos de que estavam a conduzir os angolanos à felicidade eterna. Não era essa a independência que sonhávamos para Angola e, já que não houve aproximações ao modelo brasileiro de organização social, acabámos por emigrar para o Brasil, para fugir de tantas injustiças, disparates e incompetências. O Autor prova que não foi difícil triunfar no Brasil, seja profissionalmente, seja na integração social. Fico pensando quantas perdas de talentos e de competências aconteceram em Angola, se ao menos tivessem aproveitado algumas das potencialidades dos seus naturais de tez branca, mas de sentir africano. A verdade é que o passado já passou e houve males que vieram por bem. Descobrimos o enorme Brasil, com todas as suas características físicas, humanas e sociais que, embora ainda longe da perfeição, atraíram e continuam a atrair milhões de estrangeiros. E viva a opção brasileira das nossas existências, que o Autor tão brilhantemente evoca na sua maneira de escrever, de sentir e de gracejar, já que “ninguém é de ferro”. Parabéns ao Marcelo pela iniciativa, pela sua consecução e pelos ensinamentos que transmite aos milhares de leitores que este livro merecerá.

À SOMBRA DO IMBONDEIRO

UMA HISTÓTIA DE AMOR,GUERRA E AVENTURA

Textos


A REVOLUÇÃO DOS CRAVOS EM PORTUGAL E O EXÔDO DOS ANGOLANOS

TRECHO
BASEADO NO LIVRO “À SOMBRA DO      IMBONDEIRO” DE ANTÓNIO MARCELO


O MFA (Movimento das Forças Armadas) havia derrubado a ditadura salazarista, estando o falecido Salazar agora substituído por Marcelo Caetano. A esmagadora maioria de portugueses, cansados da repressão de dezenas de anos, estava muito feliz. A promessa do movimento era a democracia, a liberdade de expressão, a participação da sociedade nos destinos da nação. O general António de Spínola foi então colocado no comando do MFA. Com o seu óculo extravagante, alinhado e com boa dialética, destacava-se como homem de bom senso. Em fevereiro de 74 havia publicado um livro intitulado Portugal e o Futuro, no qual propunha a formação de uma Comunidade Portuguesa, à luz da Comunidade Europeia, onde o chefe de estado seria o presidente da república e os demais estados e colônias seriam estados independentes com governos próprios e eleitos. O livro tinha sido confiscado e ele exonerado de suas funções. Para os portugueses, as ideias ali contidas constituíam o ideário simbólico da revolução e atendia todas as suas perspectivas.
Os portugueses e Portugal, normalmente tristes e taciturnos, puderam viver momentos de alegria e felicidade. Abraçavam-se nas ruas e viveram momentos de euforia, o sonho de uma nova era turbulenta, mas feliz.

Mas, apenas seis dias depois da Revolução, o 1º de maio de 1974, Dia do Trabalhador, deixou preocupada a classe média e alta da sociedade. Em Lisboa os trabalhadores, numa autêntica avalanche, erguendo milhares de bandeiras vermelhas com o desenho da foice e do martelo, gritavam em uníssono:

− O povo, unido, jamais será vencido!

E repetiam à exaustão:

− O povo, unido, jamais será vencido!

Era o primeiro sinal de que a esquerda comunista estava muito mais organizada do que se poderia supor, e deveras ameaçava a garantia da sonhada democracia.

Membros da PIDE e todos os que ocupavam lugares de destaque no governo anterior foram exonerados e alguns deles presos. Muitos tiveram que fugir para outros países. O movimento popular tomou posse do patrimônio dos cidadãos mais privilegiados, sem qualquer mandato oficial. O povo era quem ditava ordens. Estávamos em meio a uma revolução sem controle, as bases manipuladas pelos comunistas com apoio da facção mais forte do MFA.

A facção democrática liderada pelo General Spínola perdia terreno para a esquerda do MFA. Em 28 de setembro de 1974, numa derradeira tentativa, o General Spínola procura organizar uma manifestação da maioria silenciosa, que se opunha aos desmandos que se verificavam. Num gesto mais antidemocrático que se possa imaginar, as Forças Armadas impediram a concentração que se adivinhava gigantesca, com o pretexto de proteger as liberdades alcançadas.
O general Costa Gomes assume a Presidência e empossa o III Governo chefiado por Vasco Gonçalves, começando assim um governo de extrema esquerda, disfarçado de social-democrata.
A partir de então, os comunistas apoiados pela ala esquerdista do MFA, incrementaram os estragos já feitos, incentivando invasões de apartamentos, quintas e fábricas. Os antigos proprietários eram escorraçados e ameaçados, vendo-se obrigados a abandonar seus imóveis e suas posses.
A lei e a ordem desapareceram e o povo andava à deriva.

O povo é quem mais ordena !

Um amigo angolano, quando ainda em Luanda, havia comprado um apartamento em Lisboa, aonde iria, aposentado, passar o resto de seus dias. Era sua única propriedade. A esposa havia sido hospitalizada por um período relativamente longo e ele decidiu, nesse período, acompanhá-la no hospital. Quando regressaram, constatou que seu apartamento estava ocupada por “trabalhadores”. Nada havia a fazer.
Eles se haviam organizado em células e tinham uma força absurda. Nem polícia nem Forças Armadas os tirariam de lá, não só por falta de autoridade, mas principalmente por conivência oculta.

O apartamento que eu mantinha alugado desde meu tempo de estudante e que usava quando ia a Lisboa, estava sob ameaça. Numa das minhas idas a Portugal a porteira do prédio e minha amiga desde a minha juventude, confidenciou-me:
− Menino, tem aqui umas pessoas que querem tomar posse do seu apartamento. Eu nada posso fazer, e se tomar alguma atitude ainda corro o risco de me despedirem.
Combinei com ela voltar ao seu apartamento, situado na sobreloja entre o térreo e o primeiro andar, à hora que estivessem chegando as tais pessoas.
Dito e feito! Quando iam entrar no elevador, daqueles que se fechavam com uma porta em treliça de ferro deixando ver o interior, comecei a gritar:
− Se eu souber que alguém entrou no meu apartamento, venho aqui com um revólver e mato quem estiver lá. E repeti várias vezes essa mensagem ameaçadora, simulando teatralmente uma raiva incontida. Valeu, porque vários apartamentos do enorme prédio foram tomados. O meu, não!
 

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ANTÓNIO MARCELO
Enviado por ANTÓNIO MARCELO em 17/02/2011
Alterado em 04/08/2011
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